Aqui e ali se lê que Dilma Rousseff padece de "sarneyzação". O
comentário é uma variante benigna daqueles que consideram ou até pregam o
"impeachment" da presidente. Ambos derivam do mesmo menosprezo pela
capacidade do governante, que teria perdido rumo e poder.
"Sarneyzação" era o que se dizia de FHC em 1999, outro ano de crise e da
desvalorização do real, quebra de promessa de campanha, "estelionato
eleitoral". Era o que se dizia de Lula em 2005, quando o espetáculo do
crescimento era ensaio e o show do mensalão começava.
"Sarneyzação", claro, é a síndrome do governo que passa a se parecer com
o dos anos finais da Presidência de José Sarney, de impotência e
desastre econômico contínuo. A ruína decisiva de Sarney seria detonada
pelo grande estelionato eleitoral de 1986, que deu nome e origem à
série.
Popular devido a um plano anti-inflacionário, o Cruzado de preços
tabelados e consumo doidivanas, Sarney e seu PMDB venceram a eleição em
todos os Estados menos um e fizeram inédita maioria no Congresso. O
Cruzado, porém, no final de 1986 era um embuste populista grosseiro.
Dias após a eleição, o plano foi para o desmanche, uma fraude descarada
(lembra alguma coisa?).
A seguir, o Brasil quebraria e se afogaria na hiperinflação. As
lideranças políticas restantes do período 1950-80 se desmoralizaram.
Collor e Lula, "outsiders", seriam os finalistas da eleição de 1989.
Na "sarneyzação", um governo parece um morto-vivo, mas alguns zumbis se
recuperam. São parecidas as descrições jornalísticas da "sarneyzação"
dos tempos de Sarney, FHC ou Lula, que tiveram destinos diferentes. Nas
palavras "de época", como se descrevia a síndrome?
Paralisia decisória, falta de comando, inabilidade política, um
presidente fraco, com autoridade minada pelos aliados. Deterioração de
expectativas, envelhecimento precoce, falência de um pacto de poder, de
um estilo de liderança. Esvaziamento político derivado de crises
profundas, as quais provocam desfazimento da base política e debandada
da coalizão parlamentar.
Collor não chegou a passar por "sarneyzação", apesar do caos que criou.
Foi rápida e legalmente deposto. Não começou a cair apenas porque era
impopular. Dois meses antes da explosão final de escândalos de seu
governo, sob crise econômica horrenda (décimo ano de crise), era tido
como ruim/péssimo por 48% da população.
Dilma está com 44% de ruim/péssimo. FHC chegou a 56% em setembro de
1999, ano de protestos de massa, "fora FHC", liderados pelo PT. Sarney
terminou seu governo teratológico com 56% de ruim/péssimo.
O prestígio fernandino ficaria baixo pelo resto do governo, até 2002, em
torno de níveis parecidos com os de Dilma desde junho de 2013 –note-se
que o padrão material de vida é muito melhor agora. Lula nem de longe
jamais teve notas tão ruins quanto FHC ou sua afilhada.
Rejeição popular, economia ruim, "sarneyzação" mais ou menos aguda ou
até corrupção escandalosa, por si sós ou combinados, não levam o povo
para a rua nem definem destino presidencial. Realismo e concessões para
colocar certa ordem no tumulto econômico e político podem evitar uma
crise terminal. A "correlação de forças" socioeconômicas importa. Talvez
o acaso também.
Vinicius Torres Freire está na Folha desde 1991. Foi
secretário de Redação, editor de 'Dinheiro', 'Opinião', 'Ciência',
'Educação' e correspondente em Paris. Em sua coluna, aborda temas
políticos e econômicos. Escreve de terça a sexta e aos domingos
FOLHA
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